
Por: Beatrice E. Rangel - 03/12/2025
Testemunhar o colapso do sistema internacional criado e dirigido pelos Estados Unidos até o governo Obama nos leva a refletir sobre as consequências desse evento e as características do mundo que emergirá quando o processo de colapso terminar.
A história serve como nosso guia, tendo meticulosamente registrado a queda do Império Romano e a configuração global que emergiu de suas cinzas. Primeiramente, o mundo pós-romano carecia de uma única potência capaz de preencher o vácuo econômico, político e geopolítico deixado por Roma. Ao contrário, o mundo passou a ser povoado por potências médias, que, no caso da Europa, fragmentaram-se em grupos quase tribais, como os godos, visigodos, gauleses e anglo-saxões. A fragmentação da Europa levou a guerras intermináveis que culminaram na Segunda Guerra Mundial. Portanto, se formos definir o mundo pós-romano, podemos dizer que foi um mundo de instabilidade política, violenta competição pelo poder, especialização econômica impulsionada pela instabilidade política e presença generalizada de violência.
Se aplicássemos esse padrão à nossa realidade, chegaríamos à conclusão de que o mundo pós-Bretton Woods poderia se assemelhar ao que emergiu após a queda de Roma. Na esfera econômica, com o desaparecimento de regras universalmente aplicáveis, teremos um sistema de tarifas do qual apenas nações pequenas o suficiente para serem economicamente irrelevantes e autossuficientes, como Singapura e China, escaparão. Na esfera política, haverá um realinhamento. A Europa terá que se integrar de verdade, porque o que existe hoje é um espaço econômico exclusivo sem integração de mercado. A Índia emergirá como uma potência reguladora para grande parte da Ásia. A China se desvinculará dos jogos de poder, determinada como está a alcançar seu objetivo de se tornar a principal economia do mundo. A África será dividida em regiões tributárias da Rússia, China, Índia e Europa. O Oriente Médio acabará sendo liderado pela Arábia Saudita e Israel; a América Latina continuará sua luta perpétua pelo desenvolvimento, que parece ilusório, mas que poderia começar com força se integrasse economicamente aos Estados Unidos. Esta última parece difícil, visto que em muitas partes da região prevalece a teoria da dependência do desenvolvimento, explicando o subdesenvolvimento da região como um subproduto do imperialismo estadunidense. As rivalidades se intensificarão na Ásia, na África e em algumas regiões da América Latina. A Rússia reinará suprema ao longo da Rota da Seda e tentará afirmar sua dominância no Ártico. Em suma, viveremos um século de conflitos internos e internacionais que prometem mudar o panorama geopolítico do planeta Terra.
Será um mundo muito mais multipolar e regionalizado; menos globalizado financeiramente e mais fragmentado nas áreas de moedas, regras e cadeias de suprimentos.
Do ponto de vista monetário, a multipolaridade será evidente. O dólar americano não desaparecerá, mas perderá sua exclusividade. A configuração mais provável da área monetária prevê que o dólar seja a moeda dominante nos mercados de capitais, mas seu uso nas transações comerciais globais será significativamente reduzido. O dólar dividirá o protagonismo com o euro e o renminbi, que se tornará a principal moeda de troca na Ásia e em partes do Oriente Médio. As moedas digitais apresentarão um crescimento expressivo. Redes de pagamento digital transfronteiriças contornarão bancos, o sistema SWIFT e até mesmo a supervisão dos EUA. Em suma, está emergindo um consórcio monetário que substituirá a hegemonia do dólar.
Outra característica deste mundo emergente é a ascensão de tecnologias e sistemas paralelos de internet. A hegemonia tecnológica dos Estados Unidos está cedendo lugar a um cenário tecnológico compartilhado com a China, a Europa e Israel. As redes 5G e 6G chinesas já superam as suas contrapartes ocidentais. As cadeias de suprimentos de semicondutores serão fragmentadas. Starlink e Gouwang já competem no setor de satélites. Tecnologia e finanças estão se tornando ferramentas inseparáveis da diplomacia.
Geopoliticamente, teremos um mundo muito mais fragmentado, competitivo e imprevisível, marcado pela rivalidade sino-americana; pela ascensão de potências médias com suas próprias agendas, como Brasil, Arábia Saudita, Turquia, Indonésia e África do Sul; por inúmeros conflitos regionais decorrentes das cadeias de suprimentos e do controle de recursos estratégicos; e pelo declínio do FMI e do Banco Mundial. Em suma, um mundo turbulento e complexo, idêntico ao que emergiu da queda do Império Romano.
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