Por: Ricardo Israel - 31/08/2025
A verdade é que não, pois, desde sua vitória eleitoral e seu retorno à presidência da República Federativa, diferentemente dos dois anteriores, o terceiro mandato de Luis Ignacio Lula da Silva colocou a política externa brasileira, pela mais rara vez em sua história, em rota de colisão com a dos Estados Unidos, em momentos históricos em que se define a primazia geopolítica do século XXI. Em outras palavras, essas decisões antecederam o retorno de Donald Trump e, por sua natureza, suas consequências podem se estender para além dos atuais mandatos de ambos.
O que está acontecendo é sério; vai além do caso Bolsonaro, e acredito que cruzou com uma questão pouco compreendida no Brasil, mas que tem a ver com a segurança nacional nos EUA, a saber, a saúde do dólar. Isso já foi dito inúmeras vezes por Trump, e não apenas por ele, pois vale lembrar que o próprio Biden fez uma viagem humilhante à Arábia Saudita para se desculpar com o atual rei, o príncipe regente Mohamed Bin Salman, após acusá-lo de ser um assassino pela morte de um jornalista dissidente em sua embaixada na Turquia. Ele foi forçado a fazer uma viagem quando o reino anunciou que consideraria receber pagamentos em yuans pelas vendas de petróleo, o que acabou fracassando. Hoje, o dólar é um importante fator de poder para Washington, pois é a moeda de poupança e negociação mundial, acima do nível real atual do país.
Vale lembrar que, assim que Lula assumiu a presidência dos BRICs, anunciou a substituição do dólar como meta de suma importância, e acredito que o Brasil não mediu o impacto do que havia sido debatido. E, por falta de capacidade, dizer isso foi, por assim dizer, irresponsável. Sem dúvida, um Lula diferente, em comparação com o que ele exibiu anteriormente como líder.
É também um confronto que o Brasil dificilmente poderá vencer, visto que o desejo de Lula de se tornar um líder global neste novo cenário também pode ser prejudicado. Não há dúvida de que o caso Bolsonaro influenciou e tem um impacto emocional muito forte em Donald Trump, que vê no ex-presidente não uma repetição dos eventos de 6 de janeiro em Washington, mas sim uma história de perseguição política que, real ou não, repercute fortemente entre seus apoiadores e tem um impacto emocional em ambos os lados.
Este é o propósito desta coluna, debater o que acredito estar acontecendo, que não pode ser explicado apenas pelo discurso da vitimização. Embora exista, assim como a presença de Bolsonaro, para encontrar uma solução, devemos entender que o que dificulta tudo é o fato de estarmos presenciando decisões políticas que distanciaram o Brasil não apenas de sua posição tradicional nas relações exteriores, mas também daquilo que Lula foi aplaudido em seus dois governos anteriores, a começar pela retórica inadequada e na hora errada, de defender irresponsavelmente a substituição do dólar.
É isso que diferencia Lula do passado, já que mesmo a proximidade com Cuba e o chavismo de seus governos anteriores são incomparáveis. De fato, naquela ocasião, não houve retrocessos semelhantes aos atuais, pois a aliança de Lula com Chávez não teve consequências para sua liderança na região nem para suas relações com os EUA. Essa aliança garantiu a sobrevivência da ditadura cubana e a consolidação do Foro de São Paulo.
Lula foi presença constante nas eleições presidenciais, sendo derrotado três vezes antes de conquistar sua primeira vitória, assumindo o cargo em 1º de janeiro de 2003 e, posteriormente, sendo reeleito. Conseguiu isso graças a uma estratégia consistente de aproximação ao centro político no segundo turno e de moderação do governo, não apenas abandonando antigos slogans revolucionários, mas também resgatando bandeiras tradicionais, presentes mesmo durante a ditadura militar, como a ideia de "Brasil Poderoso". Além disso, ideias de repúdio às leis de anistia e promessas de processar violadores de direitos humanos foram enterradas, ao contrário de outros processos de democratização na região.
Não há dúvidas de que tudo mudou profundamente depois que ele passou 580 dias preso, condenado por corrupção no processo conhecido como "Lava Jato", pena anulada por questões técnicas que tinham a ver com o fato de que, segundo o STF, seus direitos não foram respeitados no processo e nem que o tribunal chefiado pelo então juiz Sergio Moro era o competente, embora nenhuma resolução tenha estabelecido sua inocência das acusações, portanto, a dúvida sobre sua culpa permanece até hoje.
No entanto, não há dúvida de que o homem que retornou à presidência após derrotar Bolsonaro por apenas 1,8% no segundo turno, a menor margem já registrada, era uma pessoa diferente, mas que já havia decidido acertar as contas, tanto com amigos quanto com adversários. Assim, na política interna, em vez de buscar apaziguar a briga, imitando a estratégia que fracassou para os democratas nos EUA, optou-se pelo caminho da judicialização e da persecução penal. Para isso contribuíram nomeações controversas, como a de um dos advogados de Lula para o Supremo Tribunal Federal, bem como a aliança de fato que estabeleceu com alguém que fez carreira no Judiciário não como juiz, mas pela política, Alexandre de Moraes, de quem falaremos mais adiante.
O retorno de Lula não segue as mesmas diretrizes internacionais estabelecidas por seus governos anteriores. Em vez disso, em sua busca por posicionamento internacional, ele tenta fazê-lo a partir do que é conhecido como "sul global". Essa ideologia guarda muitas semelhanças com a ideologia que se pensava ter desaparecido: a das nações que se autodenominavam "não alinhadas" durante a Guerra Fria, mas que, em geral, compartilhavam as amplas teses anticolonialistas da ex-URSS. E parte disso, ou muito disso, ficou evidente nas decisões que definiriam esse novo Lula, como a reaproximação com o Irã e, sobretudo, com a China, com uma notável preferência a seu favor, nos organismos internacionais e no comércio, em comparação e em relação à sua antiga proximidade com os Estados Unidos. Essa mudança é compreensível apenas em termos comerciais, não muito diferente do restante da América Latina, mas arriscada demais quando, por trás dessas escolhas, nada menos que o cetro da superpotência do século XXI estava em jogo, e onde a China proclamava seu desejo de substituir Washington a quem quisesse ouvir.
Isso se somou a uma política internacional que, em relação à Ucrânia, quase sempre buscava se distanciar daquele país para se aproximar de Putin com aprovação. Na política regional, isso levou a uma reaproximação cada vez mais notável com a ditadura venezuelana, que atingiu seu ápice quando, juntamente com o Petro da Colômbia, desenvolveram um conjunto de estratégias para apoiar Maduro após ele fraudar as eleições de 28 de julho.
No entanto, mesmo que a questão Bolsonaro não tivesse sido levada em conta, cada uma dessas opções, sem dúvida, carregava consigo o potencial de colocar o Brasil em desacordo com os Estados Unidos, tudo isso, é claro, exacerbado pela personalidade de Trump, suas decisões impulsivas e a maneira como ele personalizou o processo de tomada de decisões.
Em tudo isso, é impressionante que a influência corretiva que a alardeada gestão profissional das relações exteriores do Brasil sempre teve no passado esteja ausente, quase sempre exigindo a presença de uma espécie de embaixador no próprio Palácio do Planalto, o Palácio do Governo e sede do poder executivo. No entanto, nada disso aconteceu com as decisões de Lula em relação às relações exteriores do Brasil, uma vez que essa influência moderadora, destinada a garantir que as atitudes presidenciais coincidissem com os interesses permanentes do Brasil, na verdade não foi vista.
Na verdade, é exatamente o oposto: a operação de um Ministério das Relações Exteriores paralelo, comandado por alguém tão experiente e próximo de Lula quanto Celso Amorim. Aos 83 anos, como chefe da Assessoria Especial da Presidência da República, e com um histórico de ter servido como ministro em duas ocasiões, ele fez exatamente o oposto: impôs as visões de Lula a todo o funcionamento do governo e do Estado.
E isso é o mais impressionante, como a partir de uma diferença tão pequena de votos, Lula impôs suas ideias pessoais sobre todo o seu histórico e sobre um esquema de equilíbrio que tanto deu certo em seus governos anteriores, em detrimento do Brasil, pois parece haver muito capricho, fobias e simpatias pessoais, e não fica claro qual seria o ganho para um país que sempre quis ser respeitado como potência futura, status que já era reconhecido por Henry Kissinger no século passado.
Essa falta de moderação tornou-se muito visível em outra questão que só poderia gerar distanciamento com os EUA e que não era evidente em governos anteriores: o acentuado antissemitismo que Lula imbuiu na política externa brasileira, a forma como ele degradou o nível das relações diplomáticas com Israel em todos os níveis, em todos os momentos e sob qualquer pretexto. Como todas as fobias, é algo pessoal, um ressentimento muito profundo, e o mais notável é como ele arrastou um país inteiro para trás dessa atitude pessoal.
De certa forma, é muito parecido com o tipo de decisão tomada por alguém que o admira profundamente, como é o caso de Boric no Chile, com uma diferença: Lula e o Brasil são importantes, enquanto Boric não, então, tendo decisões, opiniões e atitudes muito parecidas em relação a Israel e aos judeus, o chileno tem passado despercebido em Washington, apesar de suas frequentes críticas a Trump, um luxo que Lula não tem, que recebeu sanções que não ocorreram no Chile, provavelmente porque Trump ou pessoas próximas a ele simplesmente não ouviram o que o presidente chileno disse.
Tudo isso fez com que o brasileiro perdesse influência no exterior e popularidade em casa, e por isso, em publicação recente (30 de junho), a revista The Economist, que costuma aplaudir Lula, diz que seus “índices de aprovação são os mais baixos” de todos os tempos durante seus três mandatos, já que “apenas 28%” dizem estar felizes.
Neste novo governo Lula, é impressionante que decisões prejudiciais ao Brasil se acumulem, sem nenhum desejo aparente de retificação ou emenda. Isso é especialmente verdadeiro para um país que afirma ter um compromisso fundamental com os direitos humanos, apesar das sanções que recebeu, e insiste em dar continuidade a um programa como o "Mais Médicos", baseado na exploração laboral de 2.659 profissionais de saúde cubanos em benefício econômico de Havana, que retém até 80% de seus salários e mantém familiares praticamente reféns. Por isso, neste e em outros exemplos, é necessário que alguém detenha Lula, que voltou recarregado, com um discurso de superioridade moral, uma linha de distanciamento dos EUA e querendo fazer tudo o que não pôde fazer antes.
Além disso, é evidente que a amizade com China, Rússia, Cuba e Venezuela perdeu sua utilidade, prejudicando o Brasil hoje, não apenas em suas Relações Exteriores, mas também por parte de suas próprias Forças Armadas. A ameaça da Venezuela de invadir a Guiana não foi recebida com condenação, o que é incompreensível, visto que, se tivesse cumprido sua ameaça, essa força teria que ter atravessado o território brasileiro.
No entanto, tudo o que foi mencionado acima, até mesmo a definição da culpa ou inocência de Bolsonaro, empalidece em comparação com o que certamente está na raiz deste momento tão difícil para a amizade histórica entre o Brasil e os EUA, que é nada menos que o dólar. Hoje, a saúde do dólar é uma questão de segurança nacional nos EUA — não uma questão qualquer, mas uma que já existe há muito tempo — e todos os anúncios feitos por Lula, acredito, assumiram uma disputa que o Brasil não está em posição de liderar e que só pode prejudicá-lo, sem obter nada em troca.
Essa atitude de se envolver em problemas que pertencem a outro nível e categoria, que ultrapassa o que o Brasil é hoje e provavelmente continuará sendo por algum tempo, é algo que também esteve presente na atuação de Alexandre de Moraes, que chegou ao Supremo Tribunal Federal sem ter tido experiência suficiente como juiz. Isso se notou em sua atuação, em seus acertos e erros, e também na ambição que demonstrou, a começar pela forma como arrastou seus colegas do Supremo Tribunal Federal para uma cruzada pessoal, onde, antes de ser nomeado magistrado, as nomeações políticas predominaram em sua carreira.
Assim, após se formar em Direito, atuou como promotor de Justiça antes de assumir cargo público em São Paulo, o que culminou, em 2014, com sua nomeação como Secretário de Segurança do estado pelo então governador Geraldo Alckmin, então vice-presidente do Brasil. Ambos eram membros do Partido da Social Democracia (PSD), de centro-direita, na época. Posteriormente, Michel Temer, que sucedeu Dilma Rousseff na presidência, nomeou Moraes para o Supremo Tribunal Federal (STF) diretamente de seu cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública, sem qualquer transição.
E é aqui que Moraes entrou em conflito não apenas com Trump e Rubio sobre Bolsonaro, mas também com a legislação americana, tendo sido sancionado pelo Departamento do Tesouro sob a Lei Magnitsky, projetada para impor sanções, principalmente econômicas, a estrangeiros considerados culpados de violações de direitos humanos. O motivo não foi apenas Bolsonaro, mas também princípios de grande importância para os EUA, e em virtude destes, ele também entrou em conflito com parceiros e aliados europeus. O primeiro tem a ver com toda a proteção que os EUA dedicam às suas empresas de tecnologia. Moraes emitiu resoluções que atacaram empresas e também empreendedores como Elon Musk, além de afetar a neutralidade da internet garantida, bem como a extraterritorialidade de seus servidores californianos, pela Lei 230, que remonta à década de 1990. Para pesar a importância atribuída a ela, basta notar que Trump ignorou a censura a que foi submetido por essas empresas para estabelecer uma aliança com seus proprietários nesta nova era.
Além disso, nesse conflito entre as leis dos EUA e do Brasil, os EUA se tornaram praticamente a única potência a ter feito da bandeira da liberdade de expressão um objetivo de política externa semelhante ao que eram os direitos humanos durante o governo Jimmy Carter, estabelecendo uma estrutura na qual é difícil ver como Alexander de Moraes pode vencer uma disputa tão estabelecida, tanto que o veterano subsecretário de Estado Christopher Landau o acusou de querer "destruir" o relacionamento entre os dois países.
Existe uma saída? Parece que, às vezes, a ideia predominante é a de que esta é uma guerra que o Brasil não pode vencer, especialmente quando se observa a rapidez com que a União Europeia cedeu na questão tarifária, seguindo o mesmo princípio que a China aceitou desde o primeiro dia: por mais injusto que pareça, nenhum país pode se dar ao luxo de ser excluído do mercado americano. Mas, por outro lado, a necessidade política de confrontar Trump rapidamente se torna evidente, visto que em outubro de 2026 haverá eleições gerais nas quais Lula será candidato. Por isso, abraçar a bandeira sempre conquista votos na América Latina, especialmente porque ele não está com um bom desempenho nas pesquisas ultimamente.
Minha impressão é que existe uma saída, e que ela envolve fazer exatamente o que não foi feito: entender quão estreita era a vantagem de Lula quando foi eleito, que ele enfrenta uma batalha árdua e que o pior que pode acontecer é deixar Bolsonaro de fora como secretário, imitando o que falhou nos EUA. Ao mesmo tempo, o caminho a seguir é resgatar o melhor que o sistema democrático tem a oferecer, que é a busca por consenso e a resolução pacífica de conflitos.
O Supremo Tribunal Federal já anunciou sua decisão de processar o ex-presidente por suposta tentativa de golpe de Estado após a derrota nas eleições. No entanto, não há provas suficientes para justificar os cinco crimes pelos quais ele é acusado e as longas penas de prisão que ele pode receber. Talvez um acordo político que incorpore elementos da anistia atualmente em discussão no Congresso possa ser considerado.
Hoje, o Brasil parece não ter condições de vencer, colocado em uma situação difícil, consequência de ter trilhado um caminho de confronto que o colocou em um lugar onde nunca esteve antes, e cuja saída foi mostrada por Confúcio quando disse que "se você odeia uma pessoa, então você foi derrotado por ela" e "o problema de buscar vingança é que você precisa cavar não uma, mas duas covas".
@israelzipper
Mestre e doutor em Ciência Política (Universidade de Essex), Bacharel em Direito (Universidade de Barcelona), Advogado (Universidade do Chile), ex-candidato presidencial (Chile, 2013)
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