
Por: Ricardo Israel - 24/11/2025
A BBC não é apenas a emissora pública do Reino Unido, mas sem dúvida uma das organizações de notícias mais prestigiadas e conhecidas do mundo. No entanto, hoje ela enfrenta a ameaça muito real de ser processada por Donald Trump.
A questão nem sequer é nova, tendo surgido nos dias que antecederam a reeleição de Trump no ano passado. Naquela altura, reconheceu-se que houve má-fé quando o conhecido programa "Panorama" exibiu um documentário intitulado "Trump: Uma Segunda Chance?", que removeu a frase em que, durante os eventos de 6 de janeiro de 2021, o presidente pediu aos seus apoiantes que se manifestassem "pacificamente". Em vez disso, combinou fragmentos separados do discurso para insinuar o oposto: que o apelo era à violência.
Considerando a virulência dos debates a favor e contra na época, esse fato passou despercebido e, se agora explodiu com força, foi devido a uma investigação do jornal conservador britânico The Daily Telegraph, que revelou que essa situação era conhecida e aceita em altos escalões da BBC, apresentando uma investigação interna que a comprovou.
É por isso que só agora se tornou um escândalo, chegando ao Parlamento e à BBC, levando à renúncia do Diretor-Geral Tim Davie e da Chefe de Notícias Deborah Turness. Por sua vez, o Presidente do Conselho de Curadores, Samir Shah, emitiu um pedido formal de desculpas em uma carta à Comissão de Cultura, Mídia e Esporte da Câmara dos Comuns, seu órgão de supervisão, mas não de controle. Sem dúvida, se tais consequências ocorreram, isso se deve ao prestígio e à tradição da BBC; tanto que, ao renunciar, o Diretor-Geral Davie insistiu que erros foram cometidos, mas que não houve viés institucional, embora esse mesmo ponto pareça estar agora no centro do questionamento atual.
Em Washington, o presidente dos EUA anunciou sua intenção de processar a BBC por um valor entre US$ 1 bilhão e US$ 5 bilhões, incluindo indenizações. No entanto, apesar da notoriedade dessa disputa e da atenção midiática que Trump atrai, acredito que essa situação não seja a causa dos problemas atuais da BBC, mas sim a expressão de algo muito mais profundo. Em última análise, levanta a questão de se, dado o estado atual das notícias em todo o mundo e a polarização e o viés prevalecentes na informação, é possível manter um modelo de televisão pública do qual essa renomada instituição já foi um símbolo global, e que nenhum outro concorrente conseguiu igualar. Acima de tudo, mais do que um conflito com Trump, o verdadeiro perigo para o modelo e a história da BBC reside em saber se, como alegam seus críticos, ela sucumbiu ao próprio viés institucional que conseguiu evitar por tanto tempo.
A BBC, oficialmente chamada de British Broadcasting Corporation (BBC), opera como uma corporação pública protegida por uma Carta Régia, garantindo assim sua independência do controle político. Possui também um sistema de financiamento que a protege de pressões comerciais. Suas origens remontam a 18 de outubro de 1922, quando um consórcio de fabricantes britânicos de rádio criou a British Broadcasting Company Ltd., cujo objetivo era transmitir um serviço de rádio experimental. John Reith foi seu primeiro diretor executivo e, em 1º de junho de 1927, por meio da já mencionada Carta Régia, tornou-se a BBC que conhecemos hoje, com Reith como seu primeiro diretor-geral. Sinais experimentais de televisão foram adicionados em 1932 e a transmissão regular de televisão começou em 1936.
A emissora manteve-se como monopólio até 1954, quando a televisão privada surgiu no Reino Unido, embora a concorrência no rádio só tenha sido permitida na década de 1970. A instituição é financiada principalmente por meio de uma taxa de licenciamento de televisão, paga por quem possui um aparelho de televisão no Reino Unido, cujo valor é definido anualmente pelo governo britânico em acordo com o Parlamento. Aliás, também existiu um imposto sobre rádios até 1971, quando foi abolido. Além disso, embora em menor escala, a receita também provém da comercialização e venda de programas produzidos pela própria emissora, sendo suas aclamadas séries históricas, dramas de alta qualidade e documentários particularmente populares.
Durante os anos em que vivi e estudei na Inglaterra (1976-1980), sempre me surpreendeu, além do enorme prestígio institucional em todas as faixas etárias e níveis sociais, que o imposto fosse pago sem protestos, com filas visíveis nos correios, bem como vans que percorriam as ruas com instrumentos para autuar os moradores que se esquivavam do pagamento.
No entanto, os tempos mudaram, já não conta com o mesmo nível de apoio e/ou aplausos, pelo que não se trata apenas de uma crise política, de demissões internas ou de uma disputa entre o presidente dos EUA e a BBC que em breve chegará aos tribunais, provavelmente em dois cenários, um no Reino Unido e outro nos EUA, como aconteceu no caso do ator Johnny Depp e da sua ex-mulher, que, aliás, teve origem num artigo de opinião escrito por ela num jornal.
Não. A questão fundamental não é entre Trump e a BBC, mas sim se, no atual contexto global, um meio de comunicação como a BBC pode sobreviver sem grandes mudanças e adaptações, ou se seguirá o caminho de tantas emissoras públicas de televisão e rádio ao redor do mundo que tentaram emular o modelo britânico, apenas para desaparecer, tornar-se irrelevantes ou ter uma audiência mínima. E esse fenômeno, bem conhecido em regiões como a América Latina e os antigos países comunistas da Europa, parece prestes a fazer novas vítimas no meio de comunicação que mais se aproximou do prestígio da BBC nas últimas décadas, ou seja, a Espanha durante sua transição para a democracia. Hoje, os vieses da TVE são tão evidentes no que é exibido na tela que uma futura mudança de governo poderia muito bem levar à sua privatização.
Outro exemplo que pareceu funcionar na transição para a democracia foi o caso da Televisión Nacional de Chile, cujo financiamento depende parcialmente da publicidade comercial; no entanto, vieses sociais, comerciais e, sobretudo, políticos, que ali se manifestam não só na ditadura, mas também em diferentes governos democráticos, levaram a emissora a uma situação de deterioração que hoje pode ser fatal para o seu modelo de televisão pública.
É evidente que nenhum outro caso se compara totalmente ao seu prestígio, mas, nos últimos anos, a BBC também tem sido afetada por um crescente viés em sua cobertura jornalística e conteúdo documental — justamente aquilo que ela evitava e que havia afundado aqueles que tentaram imitar seu modelo. Segundo seus críticos, nos últimos cinco anos, a emissora sofreu até mesmo de um viés "wok" em relação a valores que são rejeitados e valores que são promovidos e, por vezes, até impostos.
Não se trata apenas de um problema da televisão pública, pois fenômenos semelhantes de perda de prestígio também ocorreram na televisão privada, como demonstra o caso da CNN, que há anos sofre com uma queda acentuada na receita publicitária, bem como no número de telespectadores que assistem à sua programação, principalmente devido à sua associação com certos vieses políticos, tanto nos EUA quanto em sua transmissão global, a ponto de ter sido oferecida à venda sem sucesso e, segundo relatos, chegou a ser oferecida a Elon Musk após a aquisição do Twitter para transformá-lo na X.
De certa forma, a CNN queria replicar, em uma versão progressista, o modelo conservador que obteve sucesso em audiência e receita como Fox News, mas com uma diferença, já que qualquer pessoa que acompanha a Fox sabe dos vieses que encontrará, enquanto o fracasso da CNN provavelmente se deveu ao fato de que ela queria se apresentar como o que era em seus primórdios, um veículo de mídia objetivo e imparcial, algo que ela não era mais e não é hoje.
A BBC gozou durante muito tempo de um prestígio resultante de ter alcançado níveis de fidelidade à verdade e aos fatos que talvez poucos tenham atingido na história, visto que, na Segunda Guerra Mundial, tornou-se uma fonte de referência incomparável, pois sempre foi capaz de relatar com precisão o que acontecia no campo de batalha, não apenas os triunfos britânicos, mas também as suas derrotas.
Mas parece que seus problemas atuais não estão relacionados apenas ao prestígio do que é exibido na tela; eles também se manifestam em seu financiamento. A Comissão de Contas Públicas, que supervisiona o uso do dinheiro dos contribuintes, relatou que, entre abril de 2024 e abril de 2025, a BBC perdeu US$ 1,4 bilhão devido a uma queda na audiência e, sobretudo, a um aumento acentuado na inadimplência das licenças obrigatórias. Isso reflete os tempos de mudança e evidencia ainda mais a crise que o modelo enfrenta. A queda na audiência e o fato de muitas pessoas estarem sonegando o pagamento, que atualmente equivale a £ 174,50 anuais (cerca de US$ 223) por contribuinte, que contribuiu com £ 3,8 bilhões (US$ 4,864 bilhões) por meio dessas licenças para garantir a independência financeira da instituição, são fatores que contribuem significativamente para o prejuízo.
O futuro é incerto, visto que esta comissão parlamentar relata que a recusa em pagar a taxa de licenciamento já atingiu 12,5%. Além disso, com a tecnologia disponível atualmente, o sistema de monitoramento domiciliar se mostra cada vez mais ineficaz para garantir o pagamento, como demonstra o aumento de 50% nas visitas a residências sem licença no último ano, embora sem qualquer impacto em pagamentos adicionais ou ações judiciais bem-sucedidas.
Além disso, o caso Trump é uma notícia de grande impacto, ainda que tardia, mas de forma alguma única, especialmente na cobertura da política local, onde o setor populista de direita de Nigel Farage, com sua crescente popularidade, já anuncia mudanças legais, sentindo-se prejudicado pela cobertura de temas sensíveis como imigração ilegal ou o que percebem como a islamização do Reino Unido. De qualquer forma, por mais cobertura midiática que Trump receba, ele não tem poder para mudar o status legal da BBC. Sua situação é mais uma questão de pressão do que de tomada de decisão, mais uma questão de influência do que qualquer outra coisa. A realidade é que todo presidente dos EUA exerce influência no Reino Unido, assim como o México. Embora sejam nações muito diferentes, compartilham uma característica comum: quem está no poder em Londres tentará agradar quem está em Washington. No entanto, neste caso, é improvável que isso se traduza em qualquer mudança ou pressão sobre a BBC, dadas as consequências eleitorais negativas para qualquer um que tente fazê-lo a partir do número 10 de Downing Street, a residência e escritório oficial do Primeiro-Ministro.
Recentemente, Trump obteve sucesso em processos contra grandes veículos de comunicação, incluindo redes de televisão americanas, chegando a acordos judiciais com indenizações substanciais, supostamente destinadas a financiar sua futura biblioteca presidencial. Alguns observadores atribuem esse sucesso à possibilidade de juízes ordenarem a divulgação de e-mails trocados entre proprietários e executivos. No entanto, neste caso, o maior perigo para a BBC não vem de Trump, mas sim do fato de que este caso reflete uma mudança na sociedade e na política resultante da perda de prestígio do veículo, consequência de vieses que antes não eram tão acentuados.
Pessoalmente, confesso que minha antiga admiração pela BBC diminuiu um pouco, devido à forma como a programação do seu Serviço Mundial mudou. Enquanto morava na Inglaterra, acompanhava a BBC diariamente, tanto na televisão quanto no rádio. Foi uma parte importante da minha vida por muitos anos e contribuiu significativamente para moldar minha visão de mundo. Acostumei-me não só aos seus telejornais, mas também aos noticiários de hora em hora, apresentados em um inglês tão impecável e neutro que ficou conhecido como "inglês ao estilo BBC".
Além disso, senti sua presença quando precisei, especialmente porque em 1978-1979 tive que concluir um programa de pós-graduação oferecido pelas Nações Unidas em Varsóvia, em conjunto com a universidade de mesmo nome. Viajando para um país comunista sem liberdade de expressão, comprei um rádio de ondas curtas para acompanhar as notícias da BBC. Serei eternamente grato por essa decisão, e aquele querido rádio também me acompanhou quando decidi retornar ao meu país, o Chile, no final de 1980. Naquela época, o Chile também carecia de liberdade de expressão, ainda vivendo sob a ditadura de Augusto Pinochet. Isso me permitiu tomar conhecimento de situações no Chile que não eram noticiadas pela mídia nacional, embora estivessem presentes nas transmissões em espanhol da Rádio Moscou.
Mesmo antes da transição, quando o Chile retomou a cobertura jornalística normal, parei de ouvir as transmissões de rádio. Hoje, sinto um grande distanciamento da cobertura televisiva internacional do país, que em alguns casos distorce e se afasta dos padrões profissionais que eu conhecia e admirava, especialmente em temas com forte viés, como os ataques constantes e flagrantes a tudo o que Israel faz e representa. Para citar apenas um exemplo, também me incomoda a cobertura da Venezuela e a forma como retratam Maduro como se fosse um governo normal.
É doloroso constatar como os padrões jornalísticos decaíram em um veículo de comunicação que já foi tão importante na minha vida. Hoje, evito assisti-lo ao máximo; a comparação me entristece. Acredito, portanto, que a situação de Trump — quer ele ganhe ou perca na justiça — não seja o mais importante. Em vez disso, devido às mudanças na sociedade, na política, no mundo, no Reino Unido e, principalmente, dentro da BBC, o próprio modelo da emissora está em crise. Hoje, um veículo de comunicação como a BBC deveria ser mais necessário do que nunca, mas o futuro parece incerto.
Lamento isso mais do que ninguém, porque o que é necessário é alguém com alcance global, que transmita em vários idiomas, estabeleça padrões mínimos e seja um exemplo, mas acho que a BBC, que marcou e enriqueceu uma era que agora está desaparecendo diante de nossos olhos, não é mais isso, já que tudo indica que a serpente vive dentro de seu prédio corporativo.
Como disse Alexis de Tocqueville no século XIX, a saúde de uma democracia depende da qualidade de suas instituições, e a BBC que sinto falta e que tinha tanto prestígio já não é a mesma de quando, sem ser estatal, era uma instituição sólida, estável e exemplar.
É necessário, é imprescindível, mas não é apropriado pedir algo que já não prevalece. As palavras não bastam; os fatos desmentem o ideal que outrora existiu, como demonstra diariamente a sua cobertura tendenciosa de um tema tão complexo como o Médio Oriente, onde, além disso, tanta responsabilidade ainda recai sobre o país sucessor do mandato britânico.
“Verba et facta”, palavras e ações, ambas juntas, somadas, diziam os romanos no auge do império, o que ainda é válido para a BBC, e eu cruzo os dedos para que ela volte a imitar esse passado que está desaparecendo diante de nossos olhos.
@israelzipper
Mestrado e doutorado em Ciência Política (Universidade de Essex), bacharel em Direito (Universidade de Barcelona), advogado (Universidade do Chile), ex-candidato à presidência (Chile, 2013).
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