Século 21 e transições na América Latina

Beatrice E. Rangel

Por: Beatrice E. Rangel - 15/05/2024


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Para a maioria dos observadores da região, passa despercebido o poderoso processo de mudança que a região atravessa e que terá como destino inexorável a constituição de repúblicas livres e soberanas pela primeira vez na história.

Com efeito, na América Latina, desde o século XVI, coexistiram diversas expressões geográficas que aninham instituições feudais cuja virtude tem sido prolongar durante séculos o corporativismo político e o mercantilismo económico. Graças a isto temos uma região povoada por economias paraplégicas e sistemas políticos que impedem a participação ou a regulam até ao ponto de estrangulamento.

As forças tecnológicas, das alterações climáticas e da globalização têm cooperado silenciosa e persistentemente, como as gotas que formam estalactites, para criar uma base de cidadãos suficientemente informada e forte para lançar as forças da mudança institucional.

Isto foi claramente visto nas eleições no Panamá. O povo panamenho, imbuído da sabedoria transformadora de uma base eleitoral majoritária de 24 a 40 anos, rompeu as barreiras do modelo democrático apoiado na predominância de três partidos políticos – dois tradicionais e um formado por um líder militar – para eleger um candidato repudiado pelas elites políticas. E para garantir que a cruzada anticorrupção e pró-liberdade que inspirou esta onda transformadora não teve armadilhas na Assembleia, o eleitorado criou as bases para o parlamentarismo e a protecção dos seus interesses. O maior bloco parlamentar deixou de ser o PRD. Agora é a dos deputados independentes eleitos por diversas organizações da sociedade civil. Segue-se o Realizando Metas (partido de Mulino) com 13 deputados. Entre eles, chegam a 34 deputados de um total de 72 membros da Assembleia. Qualquer medida terá que passar pelo crivo dos representantes da sociedade civil para chegar a um consenso. E mesmo que haja episódios de perda de governação, o Panamá junta-se hoje às nações que estão a construir um quadro institucional diferente daquele que prevaleceu nos últimos quatro séculos.

O México é talvez a nação onde estão a ocorrer as maiores mudanças institucionais. Em primeiro lugar, porque só o facto de no país mais sexista da região existirem duas mulheres que lutam pela presidência já representa, por si só, uma mudança importante. Mas, além disso, as eleições gerais elegerão 20 mil autoridades nacionais, estaduais e municipais. Estas eleições são realizadas sob o signo do terror, uma vez que o crime organizado faz o seu trabalho em muitos municípios, sequestrando e “desaparecendo” candidatos que não se curvam aos seus desígnios. Contudo, também no México, o eleitorado com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos poderá eventualmente tornar-se uma força de mudança. Numa recente simulação eleitoral realizada pelas 400 principais universidades do país para combater a apatia face ao voto, a resposta foi massiva e curiosamente também o foram os resultados da simulação eleitoral. Claudia Sheinbaum foi a vencedora e em segundo lugar ficou Jorge Álvarez Maynes, de 38 anos e representante do Movimento Cidadão. Se esta onda de votos juvenis se consolidasse, haveria um novo sistema bipartidário mexicano representado por Morena e Movimiento Ciudadano. Morena sem López Obrador ao leme e o Movimiento Ciudadano com seu hálito fresco e libertário certamente levarão o navio mexicano a um porto do século XXI.

Mas talvez seja a Venezuela que trilhará os campos mais libertários da região. Durante quase três décadas sofreu uma das tiranias mais desastrosas da história. Tão desastroso que mudou o curso do seu desenvolvimento para destruir as melhores infra-estruturas rodoviárias e comerciais da região e transformar o país numa espécie de Somália sul-americana. A sociedade civil venezuelana, porém, não aceitou este destino. Desde muito cedo na administração chavista ele saiu às ruas para expressar seu descontentamento; Ele marchou e coletou assinaturas para recorrer a métodos constitucionais para escapar do cerco ditatorial. Quando o jugo se tornou insuportável, os seus filhos saíram para oferecer as suas vidas no altar da liberdade. Hoje, depois de muita falta de sabor, liderada por líderes da oposição que não corresponderam ao apelo da história, segue uma líder nascida do seu ventre. Dona Machado vem sofrendo com ela os ataques do regime e com ela tem saído para mais uma vez promover a solução eleitoral. Com astúcia e habilidade ele escolheu um companheiro de chapa ideal que será responsável pela transição. E toda esta feira tem sido realizada dentro da ordem democrática e seguindo a via eleitoral. Algo inédito na América Latina. Quão sem precedentes serão as instituições que a sociedade civil constrói na Venezuela.


As opiniões aqui publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores.