Por: Mariano Caucino - 01/12/2023
Ao longo dos seus cem anos de vida, Henry Kissinger estabeleceu um padrão tão elevado como intelectual e estadista, ao ponto de ofuscar os seus antecessores e sucessores nos cargos de Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado ocupados durante as administrações dos Presidentes Nixon e Ford.
Provavelmente ninguém na história recente dos Estados Unidos e do mundo manteve uma influência nos assuntos globais comparável à exercida por Kissinger quase cinquenta anos depois de ter completado as suas funções governamentais.
Escritor incansável, deixou-nos inúmeras obras de imenso valor, tendo publicado a sua última, “Liderança”, às vésperas do seu centenário.
Polêmico e brilhante, polêmico e brilhante, Kissinger será objeto de homenagens generalizadas. Há alguns meses, nestas colunas, e por ocasião do seu centenário, optei por evocar o que considero uma das chaves do seu pensamento estratégico porque entendo que contém uma lição fundamental dos tempos que vivemos.
Admirador do sistema de equilíbrio de poder, ao longo de toda a sua carreira promoveu a procura da estabilidade através de um quadro de legitimidade aceitável para os actores centrais do sistema.
Uma questão fundamental que ele desenvolveria em Um Mundo Restaurado. A Política do Conservadorismo numa Era Revolucionária (1954), em que explicaria os problemas da ordem europeia após as convulsões da Revolução Francesa e das Guerras Napoleónicas.
Um ensaio extraordinário sobre a centralidade da legitimidade. Um conceito que não é necessariamente equiparado ao “que é justo”, mas sim à capacidade de alcançar um quadro mínimo de entendimento entre os Estados. Em que aceitam um conjunto de normas e regras a tal ponto que nenhum deles fica tão insatisfeito a ponto de ser tentado a iniciar um curso de ação que visa desafiar esses cânones. Como aconteceu com a Alemanha após o Tratado de Versalhes.
A tal ponto que os arranjos de 1919 seriam talvez o oposto dos do Congresso de Viena de 1815. Quando uma França derrotada, responsável por ter quebrado a ordem europeia, foi admitida como uma grande potência. Graças ao talento talvez do diplomata mais admirado por Kissinger: K. Metternich.
Porque, como escreveu Kissinger, se a estabilidade da Europa foi resgatada do caos, isso foi possível graças ao trabalho do ministro britânico Castlereagh e do seu homólogo austríaco. Aquele que explicou com maestria que os estadistas devem procurar conciliar o que é considerado justo com o que é possível. Num mundo em que enquanto o primeiro depende da estrutura interna de cada Estado, o segundo surge da relação de forças derivadas dos recursos, da posição geográfica e da determinação dos diferentes membros da comunidade internacional.
Aqueles que aplicariam o seu talento político para alertar que, para além dos seus desejos, para superar os traumas da era revolucionária e dotar o sistema de um quadro de estabilidade, era necessário alcançar um equilíbrio de poder. Aquela que surgiria da organização de uma ordem europeia em torno de cinco grandes potências compostas pela Grã-Bretanha, Rússia, Áustria, Prússia e uma França dentro das suas fronteiras naturais.
Depois de Waterloo, a queda da França seria seguida por um novo equilíbrio. Uma realidade alertada por Metternich que detectou que era a Áustria, com a sua posição geográfica eventualmente condenada à devastação, quem estava mais interessada na sua restauração. O seu Estado era fundamental, sem cuja assistência nenhuma das outras potências poderia alcançar uma vitória decisiva. O que o forçou a exercer a mais sofisticada diplomacia.
Um entendimento para o qual o próprio Metternich convidou o próprio Napoleão, sem sucesso. Ao oferecer um esquema em que a França abandonaria as suas conquistas para além do Reno, cessando a sua política revolucionária. O que teria implicado – nas palavras de Kissinger – que Napoleão deixou de ser Napoleão. Talvez permitindo que ele se salvasse de si mesmo.
Mas esse gênio não poderia parar. Incapaz de compreender o sentido de proporção e convencido de que o seu poder provinha de uma série incessante de campanhas militares, não podia contentar-se - como advertiu Talleyrand - em ser rei de França. Dedicando-se a uma carreira que o levaria da república à ditadura militar, da ditadura militar à monarquia universal e da monarquia universal ao desastre de Moscovo.
Porque – como escreveu Kissinger –, ao estilo de uma tragédia grega, os avisos dos oráculos nem sempre são suficientes para evitar o desastre. Pois a salvação não reside no conhecimento, mas na aceitação da realidade. A tal ponto que Napoleão se tornaria incompatível com a paz da Europa.
O Congresso de Viena seria chamado a restaurar o equilíbrio de poder. Porque a lógica da guerra é o poder, enquanto a lógica da paz é a proporção. E embora o triunfo na guerra seja vitória, o triunfo na paz é estabilidade. Que tinha de ser preservado através de uma fórmula de legitimidade que evitasse que um dos actores do sistema fosse tentado a desafiar novamente a ordem europeia.
Kissinger alertou que qualquer entendimento internacional aceitável implica algum grau de insatisfação para as partes. Porque -paradoxalmente- se um poder estivesse plenamente satisfeito, todos os outros ficariam totalmente insatisfeitos e uma situação revolucionária seria talvez inexorável.
A estabilidade – para Kissinger – surgiria de uma ordem na qual os seus membros percebessem que têm uma segurança relativamente aceitável. Em que, embora persistam queixas e insatisfações parciais, é essencial a ausência de reclamações de tal magnitude que as levem a procurar destruir o sistema em vez de alterá-lo.
Kissinger reconheceu que o Congresso de Viena foi um esforço para alcançar a estabilidade e não a vingança. O que implicava que a França não deveria ser dilacerada, mas levada à aceitação dos seus limites. O seu mérito estaria baseado no slogan de evitar a insatisfação extrema que poderia levar qualquer ator ao ponto de tentar derrubar o acordo em vez de alterá-lo diplomaticamente. Um entendimento que - essencialmente - funcionaria durante quase cem anos, proporcionando ao sistema um tempo de relativa paz e prosperidade quase irrepetível.
Quis o destino que as carreiras de dois gigantes como Richard Nixon e Henry Kissinger se cruzaram no final de 1968, quando o primeiro deles se tornou presidente dos Estados Unidos. Para convocar aquele talentoso professor de Harvard que ele praticamente conhecia apenas através dos seus escritos e que serviu como conselheiro de ninguém menos que o seu rival interno, o governador de Nova Iorque, Nelson Rockefeller.
Porque quando a hora da História marcou a necessidade de abertura à China Popular, os Estados Unidos tiveram a sorte de ter esses estadistas na Casa Branca. Aqueles que compreenderam plenamente as virtudes do equilíbrio de poder. O que, por outras palavras, equivalia a compreender que os interesses dos Estados Unidos seriam melhor servidos na medida em que Washington conseguisse uma relação melhor com Moscovo e Pequim do que aquela que mantinham entre si.
Ensinamentos que voltam a ser relevantes no mundo atual. Quando o terceiro ator mais importante do mundo entende - com ou sem razão - que a ordem global que emergiu no final da Guerra Fria contém doses inaceitáveis de ilegitimidade. Com o agravante de levá-lo a adoptar uma política revisionista. Ao ponto de pôr em causa o próprio fundamento do sistema de Estados soberanos baseado na inviolabilidade das fronteiras.
Nos últimos cinquenta anos, tanto a nível académico como no campo da diplomacia, ninguém compreendeu melhor do que Henry Kissinger as virtudes do sistema de equilíbrio de poder e a necessidade de manter o critério de legitimidade para a manutenção de uma ordem global capaz de de proporcionar ao mundo uma dose de estabilidade aceitável que permita sustentar a paz e a segurança internacionais.
Depois de uma vida irrepetível dedicada ao ensino e à aplicação dessas lições, Henry Kissinger faleceu na última quarta-feira de novembro, em sua residência em Connecticut (EUA), aos cem anos de idade.
O melhor morreu.
Mariano A. Caucino é especialista em relações internacionais. Ex-embaixador em Israel e Costa Rica.
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