Kissinger e a lição da legitimidade

Mariano Caucino

Por: Mariano Caucino - 21/05/2023


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Prestes a comemorar seus primeiros cem anos de vida, Henry Kissinger é alvo de uma ampla homenagem. Mas como é impossível descrever sua vida e obra em uma coluna de opinião, talvez seja útil parar em um ponto de seu pensamento estratégico que contém uma lição fundamental no tempo em que vivemos.

Admirador do sistema de equilíbrio de poder, ao longo de toda a sua carreira -tanto na academia como na diplomacia- Kissinger promoveu a busca da estabilidade através de um quadro de legitimidade aceitável para os atores centrais do sistema.

Um ponto exibido em “A World Restored. The Politics of Conservatism in a Revolutionary Age” (1954), no qual explicaria os problemas da ordem europeia após as convulsões da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas.

Um ensaio extraordinário sobre a centralidade da legitimidade. Um conceito que não é necessariamente equiparado a "justo", mas sim à capacidade de alcançar um quadro mínimo de entendimento entre os Estados. Em que eles aceitam um conjunto de normas e regras a ponto de nenhum deles ficar tão insatisfeito a ponto de ser tentado a iniciar um curso de ação para desafiar os referidos cânones. Como aconteceu com a Alemanha após o Tratado de Versalhes.

A ponto de os arranjos de 1919 serem talvez opostos aos do Congresso de Viena de 1815. Quando a França foi derrotada e responsável por ter rompido a ordem européia, foi admitida como grande potência. Graças ao talento talvez do diplomata mais admirado por Kissinger: K. Metternich.

Porque, como escreveu Kissinger, se a estabilidade da Europa foi resgatada do caos, isso foi possível graças ao trabalho do ministro britânico Castlereagh e de seu homólogo austríaco. Aquele que explicou com maestria que os estadistas devem tentar conciliar o que é considerado justo com o que é possível. Num mundo em que enquanto a primeira depende da estrutura doméstica de cada Estado, a segunda decorre da relação de forças derivada dos recursos, da posição geográfica e da determinação dos diferentes membros da comunidade internacional.

Aqueles que aplicariam seu talento político para alertar que, além de seus desejos, para superar os traumas da era revolucionária e dotar o sistema de um quadro de estabilidade, era necessário alcançar um equilíbrio de poder. A que surgiria da organização de uma ordem européia em torno de cinco grandes potências compostas por Grã-Bretanha, Rússia, Áustria, Prússia e uma França dentro de suas fronteiras naturais.

Depois de Waterloo, a queda da França seria seguida por um novo equilíbrio. Uma realidade alertada por Metternich que detectou que era a Áustria, com a sua posição geográfica eventualmente condenada à devastação, a mais interessada na sua restauração. Deles era o estado pivô sem cuja ajuda nenhum dos outros poderes poderia alcançar uma vitória decisiva. O que o obrigou a exercer a mais sofisticada diplomacia.

Um entendimento para o qual Metternich havia convidado, sem sucesso, o próprio Napoleão. Oferecendo-lhe um esquema no qual a França abandonaria suas conquistas além do Reno, cessando sua política revolucionária. O que implicaria -nas palavras de Kissinger- que Napoleão deixaria de ser Napoleão. Talvez talvez se permitindo ser salvo.

Mas esse gênio não podia parar. Incapaz de entender um senso de proporção e convencido de que seu poder vinha de uma série incessante de campanhas militares, ele não podia se contentar - como advertiu Talleyrand - em ser rei da França. Entregando-se a uma carreira que o levaria da república à ditadura militar, da ditadura militar à monarquia universal e da monarquia universal ao desastre de Moscou.

Porque -como escreveu Kissinger-, ao estilo de uma tragédia grega, nem sempre as advertências dos oráculos são suficientes para evitar o desastre. Pois a salvação não reside no conhecimento, mas na aceitação da realidade. A ponto de Napoleão se tornar incompatível com a paz da Europa.

O Congresso de Viena seria convocado para restaurar o equilíbrio de poder. Porque a lógica da guerra é o poder, enquanto a lógica da paz é a proporção. E enquanto o triunfo na guerra é vitória, o triunfo na paz é estabilidade. Aquele que deveria ser preservado por meio de uma fórmula de legitimidade que impedisse que um dos atores do sistema fosse tentado a voltar para desafiar a ordem europeia.

Kissinger alertou que qualquer entendimento internacional aceitável implica algum grau de insatisfação das partes. Porque -paradoxalmente- se um poder estivesse plenamente satisfeito, todos os outros estariam totalmente insatisfeitos e uma situação revolucionária talvez fosse inexorável.

A estabilidade -para Kissinger- surgiria de uma ordem em que seus membros percebessem que possuem uma segurança relativamente aceitável. Em que, embora persistam reivindicações e insatisfações parciais, é essencial que não haja reclamações de tal magnitude que os levem a buscar destruir o sistema em vez de alterá-lo.

Kissinger reconheceu que o Congresso de Viena foi um esforço para alcançar estabilidade e não vingança. O que implicava que a França não deveria ser despedaçada, mas levada à aceitação de seus limites. Seu mérito estaria baseado em um slogan de evitar a insatisfação extrema que poderia levar algum ator a ponto de buscar derrubar o acordo em vez de alterá-lo diplomaticamente. Um entendimento que -em essência- funcionaria por quase cem anos, dotando o sistema de um tempo quase irrepetível de relativa paz e prosperidade.

Ensinamentos que voltam a ser relevantes no mundo de hoje. Quando o terceiro ator mais importante do mundo entende - com ou sem razão - que a ordem global surgida no final da Guerra Fria contém doses inaceitáveis ​​de ilegitimidade. Com a agravante de levá-lo a adotar uma política revisionista. Ao extremo de questionar o próprio fundamento do sistema de Estados soberanos baseado na inviolabilidade das fronteiras.

Mariano A. Caucino é especialista em relações internacionais. Ex-embaixador em Israel e Costa Rica.


As opiniões aqui publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores.