Estados Unidos e visita de Xi Jinping a Putin

Ricardo Israel

Por: Ricardo Israel - 27/03/2023


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Dois dias de reuniões concluídos em Moscou. Foi o 40 entre eles.

Não houve anúncios espetaculares, mas foi a confirmação de uma aliança entre os dois países. Não é um casamento de amor, mas de conveniência. Uma novidade histórica, aliás, já que nunca houve nada parecido entre os dois, tanto que, durante a guerra fria, houve uma relação de adversários ideológicos com a extinta URSS, que chegou a ter um confronto armado na década de 60.

A cúpula também demonstrou que não é uma aliança de iguais, mas que a China tem vantagem em um momento de fraqueza russa. Hoje não pesam nem representam o mesmo, já que a Rússia é uma potência que só tem ambições na Europa e na Ásia enquanto a China aspira substituir os EUA como potência dominante, projeto que tem data, 1º de outubro de 2049, dia em que 100 anos se passaram desde a fundação da República Popular da China por Mao.

Para a China, é mais um passo em um roteiro cujo marco é a impotência dos EUA diante do bloqueio virtual em Taiwan devido à visita de Nancy Pelosi. Mais tarde, no Congresso do Partido Comunista, Xi se tornou a pessoa mais poderosa desde Mao, e a ditadura pessoal substituiu a coletiva.

Mais tarde, a China se apresentou ao mundo com um discurso de autoafirmação, de poder agressivo por meio de seu novo chanceler, e surpreendeu Washington e o mundo ao organizar uma aproximação entre ninguém menos que a Arábia Saudita e o Irã, cujas consequências ainda são para ser visto. manifesto em tudo, enquanto a China negocia para que a Arábia Saudita aceite o pagamento em yuan, o que quebraria o monopólio que o dólar americano tem no mercado de energia desde 1945.

Agora Xi chega com sua proposta de paz para a Ucrânia, doze pontos que dizem ao mundo que a China também quer substituir os EUA como a "nação indispensável", aquela que faz coisas que outros não podem fazer, que a Nova Ordem Internacional que ele propõe em substituindo o liberal é um chinês, e que traz a geopolítica de volta a uma globalização que parecia ser apenas economia.

Putin não o cedeu a uma aceitação, apesar de a proposta o favorecer, pois um cessar-fogo nestas condições provavelmente significaria a divisão da Ucrânia e uma realidade semelhante ao paralelo 38 entre as duas Coreias. No entanto, a paciência chinesa não muda, porque é conveniente para a Rússia e porque a virtual quebra de relações que existe faz com que ela tenha algo que falta aos EUA, que é conversar com Putin e ser ouvido.

O fato de não haver aceitação formal da Rússia não significa que a questão desaparecerá, pois provavelmente será retomada na visita que Lula fará a Pequim no dia 28 de março, já que o presidente brasileiro tem manifestado ideias de paz muito semelhante à proposta chinesa. Não só por simpatia (que tem pelos dois), mas por conveniência econômica, por exemplo, na questão agrícola.

E esse fato abre um componente que torna o desafio chinês radicalmente diferente para os EUA do que era o soviético. O que faz a diferença é o imenso poder econômico da China, por exemplo, sua participação na dívida pública de Washington e sua importância para as empresas americanas.

A sigla BRIC foi um acrônimo criado para identificar economias emergentes com grandes dimensões geográficas e demográficas. Foi originalmente uma proposta de um consultor de negócios em Londres, mas já teve algumas cúpulas entre Brasil, Rússia, Índia e China, e é uma realidade geopolítica à qual a África do Sul e por cortesia chinesa também o Irã foram adicionados, e embora a Índia seja adversária da China, é um grupo do qual os EUA não participam.

Reflete muito bem a mudança do mundo nos últimos tempos, já que originalmente era entre iguais e hoje, o poder chinês aparece de forma visível e desigual sobre os demais.

E isso marca também a cimeira que acaba de acontecer em Moscovo, pois deixa bem claro que a Rússia é o sócio minoritário, aquele que fornece matérias-primas e grande poder nuclear ao sócio principal, reforçando o tipo de relação que já existe havia dado na Sibéria e no Ártico, ou seja, capital, idéias e investimentos chineses.

Não houve -por enquanto- aceitação do plano de paz chinês, mas acordos políticos e econômicos, além do apoio que significa que ocorreu apenas alguns dias após o anúncio do Tribunal Penal Internacional sobre Putin, que também recebeu um convite para visitar Pequim.

Xi observou que "está chegando uma mudança que não acontecia há 100 anos", acrescentando que está sendo impulsionada pelos dois, "juntos".

Por seu lado, nesta coreografia, expressão de quem tinha preponderado nos encontros, o brinde chinês era “pela prosperidade, desenvolvimento e felicidade dos nossos povos, pela amizade... de geração em geração”.

A coisa mais importante que concluíram foi o acordo definitivo para a construção de um gigantesco gasoduto para transportar gás da Sibéria à China, provavelmente mais difícil de destruir do que o Nord Stream II marítimo entre a Rússia e a Alemanha. E se menciono esta questão, é porque entre as conclusões está o pedido de que este fato seja investigado internacionalmente.

Foi uma cimeira onde há divergências com o que é habitual no Ocidente, uma vez que não houve opinião pública própria, no sentido que aqui se entende. Acima de tudo, o que se buscou foi demonstrar uma comunidade de interesses para enfrentar os EUA, também, em dias onde em Bakhmut, a Rússia não conseguiu conquistar esta cidade devido à resistência ucraniana.

Esta cimeira parece ter acrescentado o que faltava a dois documentos, de interesse comum, que circularam em reuniões anteriores de forma mais embrionária, e que têm a ver com a visão de um futuro comum, onde ambos reconhecem que a nova configuração internacional tem predominância chinesa, o que fica evidente na estrutura dos documentos.

Por seu lado, os pilares da cooperação, que aparentemente seriam nove, não são todos usuais para os russos, mas são para os chineses, que também aparecem na lista de áreas de interesse.

O primeiro documento fala do “Aprofundamento da Aliança de Coordenação Estratégica para a Nova Era” e o segundo de uma espécie de “Plano sobre as prioridades da Cooperação Económica” entre os dois.

As prioridades chinesas figuram no apoio à Iniciativa Sede Rodoviária e na

o "caminho da modernização", bem como que a visão sobre direitos humanos e cooperação militar é "comum".

As prioridades chinesas também surgem em questões como "reforma da governança internacional" e "democratização das relações internacionais".

Por fim, nota-se também a mão de Pequim na crítica à Aukus, a aliança entre EUA, Austrália e Reino Unido, que inclui submarinos nucleares, para conter a China no Pacífico.

Como a Ucrânia figura? Diz-se que "a China não é neutra" e que ambos os países têm posições comuns em relação a ela, sem aprofundar ou acrescentar nada de novo.

Há sem dúvida uma aliança, uma visão partilhada da ordem internacional e uma narrativa, onde predomina a China, que obviamente convém a Pequim e onde o papel diminuído da Rússia, talvez a China veja como uma dádiva geopolítica.

Neste novo esquema, os acertos e, sobretudo, os erros dos EUA não foram menores neste resultado de claro benefício da China, o grande e único rival dos EUA no topo, deixando em aberto a questão de saber se os EUA está preparada para enfrentar uma China que se desenvolve a todos os níveis, e cuja caminhada até ao topo só pode ser travada se houver vontade de a enfrentar.

É também um mundo onde os EUA perderam o seu poder de dissuasão (sobretudo, após a caótica retirada do Afeganistão) e também a sua articulação com outros parceiros que não os europeus. Claramente, hoje nem a China nem a Rússia a ouvem muito.

É sem dúvida uma nova etapa, onde não só a neutralidade escandinava se modifica, mas também os derrotados da Segunda Guerra Mundial parecem disponíveis para se armar pela primeira vez desde 1945, a Alemanha na Europa e o Japão na Ásia. Nestes mesmos dias, até o primeiro-ministro do Japão foge da prudência habitual do cargo para visitar Kiev.

O que está faltando nos EUA? Tudo, tudo que abundava na guerra fria. Ou seja, clareza na identificação do adversário, confiança nas próprias vantagens, bem como unidade interna e decisão de liderar parte do mundo nessa tarefa. De fato, se os EUA querem continuar sendo a superpotência líder, antes de liderar outras devem se convencer de que não há retorno do desafio chinês.

Ou seja, você precisa reagir.

Para começar, não deve deixar que a China passe ao lado com a narrativa de uma nova ordem internacional, já que a que vivemos hoje é fruto da liderança dos EUA, inclusive com a criação das Nações Unidas. O mesmo aconteceu com a anterior no século 20, a fracassada Liga das Nações.

E mesmo que não se perceba, visto que abundam as resoluções contra os EUA, continua a financiá-lo. O controle por adversários das principais instituições da ONU, como os Direitos Humanos, também é abundante. Há também uma burocracia internacional que controla agendas e tem interesses próprios, o que nunca aconteceu na Guerra Fria. Acima de tudo, há um sentimento de obsolescência.

Para os EUA, proclamar sua decisão de criar uma Nova Arquitetura Internacional, com instituições que melhor reflitam o século 21, é também uma necessidade para a política interna, pois daria a um país polarizado e dividido unidade de propósito e um senso de missão do isso está faltando Proporcionaria uma política externa bipartidária, que não existe hoje.

Os EUA precisam resgatar a ideia poderosa de que a luta é por princípios como a democracia e os direitos humanos. Não é por causa do mercado, já que sua primazia como alocador de recursos é tão aceita que esta recente cúpula sino-russa caracteriza a promoção de uma "economia mundial aberta".

O que deve ser enfatizado repetidamente é a diferença entre liberdade e ditadura.

Também o facto de a maior potência dos EUA poder não ser o "hard", o militar, mas o "soft", a um duplo nível: a) no efeito demonstração do "sonho americano" que atrai tantos imigrantes para suas fronteiras, e que foi vital para a vitória sobre a URSS. E b) um poder que nenhum outro país ou império jamais proporcionou, nem o da elite, o da cultura popular, o das imagens, aquele onde até para protestar contra os EUA se utilizam artefatos dessa cultura popular.

Quanto à China, para se convencer de suas intenções, os EUA só precisam rever sua própria história, já que os passos chineses parecem ser uma cópia do que Washington fez com a Grã-Bretanha há um século.

Sem esquecer que assim era mesmo sendo aliados. E a China nunca foi.


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